Nasci naquela traiçoeira manhã de fevereiro do dia vinte e quatro. Não queria ter brotado na carne novamente. Sentia-me melhor naqueles rincões onde eu flutuava livre já há algum tempo. Agora vinham aqueles ossos e carnes a grudarem em mim. Confesso que sofri e demorei a acostumar.
No entanto, registrava consciência daquele dever de vir. Ser missionário é grande desafio. Precisei travar a missão de reduzir egoísmo e orgulho encravados em meu ser. Pesavam, por isso a resistência em adotar também o corpo, embora elegante e de olhos azuis.
O conjunto da obra prometia arrancar paixões. Vieram, porém nenhuma fez-me ajoelhar ao casório. Quem surge na terra pisciano é de compaixão e sentimentos fortes, contudo carrega férrea personalidade. Fiel e assustado aos verdadeiros afetos, ofereci-me ao transcurso da vida.
![]()
Sentia-me potro solitário e cedo fui obrigado a aprender a dividir, ceder. O irmão que me antecedeu alimentava birra de ainda querer o seio materno. Não contente, chorava tanto que até a vizinha concedeu-lhe a mamada e o ambicionado leite. Naquela época, as mães frutificavam dezena de filhos e sempre havia seios fartos disponíveis pelas vizinhanças.
Lembro noites em que acordava em terríveis sofrimentos. Sentia-me amarrado e lutava por liberdade. Talvez fosse a faixa que usavam ao redor de bebês e eu não aceitasse. Entretanto, não recordo bem do tempo em que despertava nesta angústia. Mais claros estão os sonhos reveladores, já na adolescência, de que eu deveria vir e não queria.
Hoje compreendo algumas coisas. Em boa parte, aceito, e me obrigo a resistir para sobreviver e intensificar aprendizados enquanto permaneço por aqui. O raciocínio é óbvio. Já que se está e não há outra saída, melhor acomodar o facho e tentar ser feliz o quanto se consegue. Assim, o orgulho perde as pernas e dobra o nariz.
Tomo chimarrão enquanto penso que realizar sonhos – o de ser escritor, por exemplo – não satisfaz o ser integralmente. Há sempre o querer mais. Só publicar é pouco. É preciso alcançar a grande difusão. Todavia, escrever bem e em boa quantidade e diversidade não garantem sucesso. Contudo, ando ciente de que o dever é fazer minha parte, a outra pertence ao universo, inclusive os resultados.
![]()
Do que li e leio, observo que existem magníficas obras literárias. São inspiradoras para que eu consiga fazer algo tão impressionante algum dia. Vejo-me aquém, ainda. Mas considerável pacotão “best-seller” considero descartável. Sem valores literários e culturais, existem a denegrir e desorientar ao que se concebe como literatura.
Recorro ao bom senso. Sem calar. Omissão é ser complacente ao progresso do que é retrógrado. Ao falar, intento medir opinião e compreender, conter vontades de dizer tudo o que se pensa.
Busco aprender espírito de compaixão e humildade. O maior desafio do ser humano é entender as fases evolutivas e investir em auxiliar. Opinar sem fazer nada em prol à transformação é covardia. Crítica vazia. Esta postura só é menos pior da que contribui ao atraso. Na intenção de faturar, aproveita o espaço e carrega o barco. Disto o mundo está cheio.
Deus é fiel. O que se diz com esta colocação? Nada além do óbvio. Se não fosse fiel não seria Deus. Este é exemplo de cultura inútil, louvada por habitantes da bolha de fácil manipulação. Desvendar espiritualidade em si é abrir cortinas em raciocínios profundos e sem medo. Livros ajudam também nisso.
É neste sentido que escrevo de meus medos e dos desbravamentos necessários. A infância pobre, a adolescência insatisfeita e a juventude temerosa não destruíram a fase adulta. Se é que se atingiu a maturidade como deveria ser.
A cometer análises de certas limitações mentais existentes, muitas vezes fica-se pasmo. É surpreendente, embora várias são sucessos nacionais e internacionais. Todavia, é óbvio que há superiores a nos olhar estupefatos por tamanhas imbecilidades que cometemos. É a escada evolutiva a pleno vapor.
E por falar em vapor, ouço o trem de embarque. Desta vez, fico por aqui. É que acho lindo passear em trilhos de ferro. Remete a velho tempo que não sei se me existiu. Se não vivenciei tal cenário, aproveito agora, já que a vida me proporciona. O apito indica que chegou. Quero sair desta estação do medo.


